Bolsonaro, em encontro com evangélicos, aventou a hipótese de o STF necessitar de um ministro evangélico. A declaração, como seria de se esperar, gerou grande controvérsia. Argumentos pró e contra a proposta foram publicados na mídia e nas redes sociais.
Para ser sincero, desconheço a fé dos atuais ministros e tampouco creio ser isso algo relevante. Acredito que, envolvido pela plateia ouvinte, o presidente tenha feito uma escolha infeliz de palavras. Sua declaração não apenas prejudica a nomeação de um evangélico para o Supremo, como é inadequada à visão de religião mais comum aos brasileiros, além de promover confusão nos debates sobre estado laico e separação entre Estado e Igreja.
I. A Mulher de César
Deixe-se claro que “ser evangélico” jamais será causa impeditiva para que alguém se torne ministro da corte maior de justiça. Qualquer cidadão entre trinta e cinco e sessenta e cinco anos de idade, com notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101, CF/88) pode ser indicado e nomeado ministro. Alguém que seja evangélico pode muito bem preencher tais requisitos.
O problema está em escolher um evangélico por ser evangélico. Ao questionar sobre uma suposta necessidade do STF em ter um evangélico entre seus ministros, Bolsonaro conseguiu gerar suspeição sobre qualquer evangélico que ele possa porventura indicar para o Supremo. Mesmo que os motivos para a escolha do nome sejam outros, a máxima de que “à mulher de César não basta ser honesta” segue válida.
A mulher de César “deve parecer honesta”; porém, nenhuma escolha de evangélico parecerá honesta. O presidente levantou a hipótese de quotas para evangélicos no Supremo! E quotas geram suspeição. A percepção pública será: “só foi indicado por ser evangélico.” E como contestá-la depois de uma declaração como a de Bolsonaro?
O ministro já entraria no Supremo com sua autoridade questionada, e isso seria péssimo institucionalmente. Qualquer que seja a vantagem que Bolsonaro imagina a presença de um evangélico traria ao STF, a declaração tratou de eliminá-la. O indicado passaria um bom tempo tentando demonstrar-se ministro em oposição à imagem de evangélico – apesar da inexistência de contradição.
Em suma, se Bolsonaro está certo de que um evangélico traria uma perspectiva diferente e necessária ao Supremo, ele deveria ter ficado calado. Agora, a Inês é morta.
II. Ecumenismo Sincrético Católico
A declaração, no entanto, não causou apenas problemas de ordem prática. Trata-se de uma posição completamente alienígena ao tradicional imaginário político brasileiro. No Brasil, trata-se de algo irrelevante o fato de alguém ser protestante, pagão, maçom, ateu, outra coisa, tudo isso, ou alguma combinação dentre esses.Não querendo impor sua fé aos demais e fazendo essa bem para a pessoa, é o que basta.
Trata-se de uma característica brasileira – da coletividade nacional. Há um reconhecimento tácito de que nenhuma religião é perfeita em si e de que há um elo comum entre todas as fés. Por isso que a fé de cada um merece respeito, pois: [a] a nossa não está completamente certa (independentemente de qual seja); e [b] as outras não estão completamente erradas.
Esse é o comportamento que se espera de um ministro do Supremo, seja qual for sua fé. Isso não sou quem diz. Um famoso estudo da Fundação Perseu Abramo, publicado em março de 2017, retrata exatamente isso. Mesmo que as pessoas possam pragmaticamente preferir alguém, no caso do estudo, um político, que comungue de sua própria fé, esse requisito não é fundamental.
O fundamental é que se respeite aquilo que chamo de “ecumenismo sincrético católico” ou “multiculturalismo brasileiro” – isto é, a tendência brasileira de ir além da tolerância ao diferente, mas transformá-lo e incorporá-lo à nossa identidade.Isso é a manifestação concreta do mandamento de São Paulo em 1Tess 5:21 (“ponde tudo à prova;retende o que é bom.”), e aquilo que faz do Brasil Brasil.
III. O Estado Laico é Cristão
Aqui, vem a objeção supostamente fatal: “ministro evangélico, citação bíblica, e a separação entre Estado e Igreja, como é que fica?” Fica como sempre foi. Não se está sugerindo que o Estado brasileiro fique subordinado a uma determinada fé; nem que haja uma fé oficial, subordinada ao Estado brasileiro. Ademais, um Estado católico, a exceção da Santa Sé, é laico.
Não é coincidência que o estado laico surge no Ocidente cristão e católico. A Bíblia, no Novo Testamento, está recheada de argumentos em favor do Estado Laico, por exemplo: “dai a César o que é de César” (Mt 22-21); “meu reino não é deste mundo” (Jo 18:36); Jesus rejeita o diabo que lhe oferece todos os reinos do mundo (Lc 4:5-8); etc.
Portanto, querer implementar o reinado de Cristo na Terra é algo frontalmente contrário às Escrituras. Estamos condenados a fazer política para lidar com nossas imperfeições. O crucifixo nas repartições públicas serve para ajudar a lembrar-nos que o estado é laico e que o Paraíso jamais será alcançado no aqui e agora do tempo.
Campanha contra autoridades com fé pessoal e/ou contra símbolos cristãos nas instituições de Estado e nos espaços públicos não são feitas em defesa do Estado Laico, mas em prol de uma religião política que deseja tomar o lugar de Cristo e aceitar a proposta do diabo em Lucas 4:5-8 e Mateus 4:8-10.
Conclusão
A fé de um presidente ou de um ministro do Supremo é irrelevante. O que realmente importa é a noção de que o Brasil é formado por uma pletora de fés que tanto coexistem quanto interagem e misturam-se umas com as outras.
As autoridades podem ter qualquer fé, inclusive nenhuma, desde que respeitem essa miscigenação religiosa brasileira. Esse ecumenismo sincrético católico é o fundamento e a salvaguarda da laicidade do nosso Estado. Espero que Bolsonaro e as demais autoridades pátrias sejam capazes de perceber e agir respeitando isso.