Política é uma atividade complexa, e democracias exigem, mesmo as representativas, que todos participemos. Isso é ótimo por várias razões, mas é péssimo por outras tantas.
Por exemplo, nós tendemos a esquecer ser possível discordar de boa-fé, justificada e fundamentadamente, sobre um determinado assunto. Quando isso se torna a postura dominante, as consequências podem ser horríveis. Por que isso acontece e o que se pode fazer para evitar-se?
Política: o idiota, o imbecil, e o babaca
Tendemos a tomar nossas próprias opiniões como sendo razoáveis e, ao ouvirmos uma opinião diferente da nossa,não entendemos como é que outro pode ter chegado a uma conclusão distinta da nossa. Como numa democracia todos participamos, ouvir opiniões diferentes é muito mais comum do que gostaríamos. É por isso que se acaba brigando por causa de política.
Política representativa é ser convocado, de tempos em tempos, para escolher entre opções de ruim a horrível. Apesar de ser triste tal constatação, não há saída. A obrigação de participar politicamente existe mesmo para quem se recuse a cumpri-la.Deixar de votar apenas gera uma ilusão de “limpeza”. É uma escolha que em nada difere do ato de votar. A responsabilidade da escolha é a mesma.
Votar, incluindo abstenção, é um ato de escolher o menor dos males. Estamos todos acostumados com isso. Chega a eleição, e nos vemos obrigados a escolher entre um “idiota” e um “imbecil” – e ainda nos metemos em brigas por causa disso.
A cada eleição, medimos e ponderamos nossas opções e fazemos nossas escolhas: “entre o imbecil e o idiota, fico com o idiota.” Aí, encontramos outras pessoas e vemos as escolhas delas. Há quem concorde conosco: “muito bem, escolheu o idiota; não dá para votar no imbecil!” Porém, há quem discorde: “no fim, escolhi o imbecil; o idiota é demais para mim.” Isso nos incomoda, e muito; principalmente quando conhecemos a pessoas. Pensamos: “como é que alguém que tem bom senso pode escolher o imbecil?!”
Ao invés de focarmos no “tem bom senso”, acabamos colocando peso no “escolher o imbecil”: “alguém que vota no imbecil, só pode ser tão imbecil quanto ele!” No entanto, se é esse o caso, quem escolheu o idiota seria o quê, mesmo?Quem se abstém, ri: “brigam pela escolha entre um idiota e um imbecil!” Mas, fica a pergunta: se ele é tão melhor que as opções, por que, então, não se candidata? “Deve ser para não ser obrigado a votar num babaca!” Na política, o conflito é inevitável.
Política, contudo, também é inevitável. Como podemos, então, lidar com isso? Essa é uma questão que acompanha a humanidade, desde que os primeiros homens passaram a caminhar pelo mundo.
Política e Direito: o ser humano em diversidade
Desde o começo, o ser humano percebeu ocorrências constantes e regulares: após o dia, vem à noite, e volta o dia; o sol nasce no leste, se põe no oeste, e volta a nascer no leste; a lua fica cheia, minguante, nova, crescente, e volta a estar cheia; a estações do ano mudam do verão para o outono, do outono para o inverno, do inverno para a primavera, e da primavera volta-se ao verão; nascemos bebê do ventre da mãe, nos tornamos crianças, crescemos, viramos adultos, temos nossos bebês, envelhecemos, e morremos; etc. A vida não seria sem sentido, mas haveria uma ordem já estabelecida, na qual nos encontramos inseridos.
Isso gera uma sensação de segurança, mas também é fonte de problemas. Ao contrário de todas as outras espécies de animais, nossa adesão a essa ordem não é instintiva. Por exemplo, onde quer que se vá, colmeias, cupinzeiros, formigueiros, etc., possuem organização semelhante; mas o mesmo não ocorre com agrupamentos humanos.
Nós identificamos uma ordem, mas a forma como nos adequamos a ela está sempre em aberto. É por essa razão que precisamos fazer política. Política, pois, seria a arte de adequar uma comunidade de seres humanos à ordem da natureza.
A essa ordem, chamamos de “Lei” ou “Direito”. Política, pois, é a forma como tentamos concretizar o direito na comunidade. Por que nos damos esse trabalho? Porque nos identificamos como animais comunitários. Antes de nascermos, antes de vir ao mundo, existimos em comunidade com a mãe e, mesmo depois de nascer, ainda dependemos dos outros para tudo por anos. A vida em comunidade nos é natural.
No entanto, a forma dessa comunidade não é dada diretamente pela natureza. Temos que descobri-la, considerando o que sabemos sobre nós mesmos e sobre as circunstâncias. Ajuda que, ao virmos ao mundo, já chegamos em comunidades constituídas e com história.
Não precisamos “reinventar a roda” a cada novo nascimento. Toda sociedade humana compartilha uma auto-compreensão do que a constitui como uma comunidade política. É uma verdade que Eric Voegelin chamou de “teologia civil”.
Trata-se da “Constituição não-escrita”, a qual é sempre encontrada na prática cotidiana, muito antes de qualquer tentativa de descrevê-la e explicá-la. A mesma ordem que encontramos na natureza, experimentamos nas comunidades humanas, ainda que de forma frágil – pois essas possuem uma enorme variação, tanto historicamente quanto atualmente por todo o planeta, seja por extensão, composição, e/ou organização: desde pequenas tribos a grandes impérios; de democracias diretas a monarquias absolutas; de confederações de distintas comunidades a imposição de unidade nacional; de sociedades agrárias a sociedades comerciais; etc.
Política e Conflito: os pontos em comum
Da mesma forma que os amigos não conseguem entender por que um escolheu o idiota, e outro, o imbecil, a História está cheia de exemplos de comunidades incapazes de se entenderem umas às outras – levando inclusive a guerras. Isso, aliás, leva os cidadãos dessas comunidades arriscarem as vidas na disputa entre o idiota e o imbecil.
É como na célebre frase de Carl von Clausewitz: “A guerra é política por outros meios.”
Há um ponto comum entre as comunidades, todavia. Em todas, há uma auto-compreensão de si em relação à ordem da natureza. Noutras palavras, toda sociedade se organiza politicamente em relação ao direito como essa o compreende. As respostas são diferentes. Sempre. O que não muda é a existência de política e direito como bases da vida humana em sociedade.
Igualmente, os dois amigos têm mais pontos em comum do que imaginam à primeira vista. Apenas chegaram a respostas diferentes por serem pessoas distintas, com perspectivas e experiências particulares.
E é aqui que se encontra o caminha para a solução. Como cada um tem sua própria medida, todos necessitamos uns dos outros para medir corretamente.
Política e Abertura ao Divergente: unidade na diversidade
Quando nós nos seguramos às nossas opiniões como se fossem verdades absolutas, quando passamos nossas responsabilidades a um terceiro para que ele nos conduza à felicidade, o resultado é o contrário do pretendido. Ao depositamos nossas esperanças no idiota, no imbecil, ou no babaca, tanto os cidadãos quanto a sociedade se deterioram, e a democracia fracassa.
Devemos apresentar nossos argumentos para compará-los com as opiniões em contrário. Esse exercício aprimora tanto os cidadãos quanto à sociedade. Do debate, para quem tiver interesse, aprende-se a depurar e a julgar melhor a verdade presente na opinião – ainda que a discordância não se dissipe. Nesse caso, é preciso encontrar um consenso que permita a coexistência da divergência. Para funcionar, qualquer democracia necessariamente deve ser assim.