Achar-se uma pessoa superior às outras apenas por acreditar em Deus é bobagem. Afinal de contas, o diabo crê em Deus. Tudo depende do que fazemos com essa crença ou com a descrença.
Aliás, ser ateu não significa necessariamente descrença total. A pessoa pode atéia, agnóstica, ou mística e viver como se acreditasse em Deus; tendo um problema com o rótulo mais do que com qualquer outra coisa. O fato de Deus ser um rótulo não O torna menos verdadeiro.
Deus: a resposta definitiva
Primo meu há certo tempo contou uma história espetacular acontecida com ele. A filha de sete anos contemplava o mar quando soltou duas perguntas sem qualquer aviso prévio: “De onde vem tanta água?” e “Quem colocou o sal?”. Ao registrar a anedota nas redes sociais, meu primo jocosamente colocou a questão: “e o que faz o pai numa hora dessas?”
Bom, eu disse que, inspirando-me no filósofo alemão G.H. Leibniz, daria a mesma resposta para ambas as perguntas: ‘Deus’. O problema dessa resposta é que ao mesmo tempo em que diz tudo, acrescenta nada. ‘Deus’ não encerra nada.
Mesmo diante da resposta definitiva, a dúvida do meu primo permanecia aberta. “O que faz o pai?” Buenas, o pai não pode deixar a filha ficar “ok” só com isso. Ninguém pode ficar satisfeito com uma resposta dessas. Leibniz, claro, sabia disso.
Outro primo, brincando, sugeriu que, diante de tamanha “saia justa” o pai deveria mostrar-lhe as gaivotas. Pode-se rir, eu ri!, mas a brincadeira carrega muito de verdade. Aristóteles coloca que a filosofia – o amor pelo saber – começa com um ato de deslumbramento, como esse da filha do meu primo observando o mar. O que o pai pode fazer é não deixar esse sentimento morrer.
Pode mostrar as gaivotas e perguntar por que elas voam; pode mostrar a areia e perguntar “por que ela fofa?”; e assim por diante. “Deus” é a garantia de que sempre haverá perguntas a serem feitas e respostas a serem descobertas.
Deus e Filosofia: Todos somos Sócrates
Deus caritas est. Deus é amor, e “a medida do amor é amar sem limites” (Agostinho de Hipona). “Deus” é, pois, o Ilimitável. A filosofia é busca pelo Saber infinito. É uma jornada sem fim.
Porém, não se trata de uma jornada qualquer. Filosofia é amor e, portanto, busca a resposta definitiva. A filosofia parte do deslumbramento pessoal em direção a Deus movido pelo amor ao Saber.
Nessa tarefa, o filósofo não está sozinho. “Todo homem deseja conhecer” (Aristóteles). “Deus” é um nome que se dá ao Norte comum a todos os homens. Platão retrata essa realidade de forma impecável n’O Banquete. Eu leio o diálogo, pois esse me ensina algo verdadeiro sobre mim e sobre o que é ser humano.
Platão estrutura O Banquete de maneira a obrigar o leitor a tornar-se um personagem a mais. Para compreender o diálogo, requer-se um papel ativo por parte do leitor na construção da própria história. É uma História Sem Fim.
O texto é vivo, e novos significados emergem a cada novo leitor – a cada nova leitura. Todo o enredo altera-se dependendo de como se encaram os textos. Não há uma leitura igual a outra.
O Banquete
N’O Banquete, logo no início, o leitor é informado de que a história será contada por alguém que a ouviu de outra pessoa que esteve presente no evento relatado. Platão, como escritor, distancia-se enormemente da história que ele escreve. Quem procura Deus no Sócrates platônico, no verdadeiro ‘telefone-sem-fio’ que constitui O Banquete, essa busca torna-se ainda mais infrutífera.
Para agravar, Sócrates não faz um discurso direto na história. Ele relata uma conversa que teve com Diotima, uma sofista [os quais, normalmente, são os vilões nos textos platônicos]. Ela é quem faz o discurso, são as palavras dela que Sócrates utiliza. Portanto, no momento crucial, mas alto do diálogo, Platão, o autor, encontra-se escondido atrás de Apolodoro (o narrador), Aristodemo (a testemunha), Sócrates e Diotima. Se ele está falando de Deus, Platão escondeu-O bastante.
A dica
A dica de como lidar com tamanha bagunça é dada quando já se passam mais da metade da história. Sócrates alegadamente afirma que “ninguém pode contestar a verdade”, mas “Sócrates é facilmente contestado”. Isto é, o leitor necessita desafiar Sócrates do mesmo modo que ele, Sócrates, faz com todo mundo.
Se alguém quiser extrair verdades do diálogo, terá que obrigatoriamente sujar as mãos. Não há outro caminho senão enterrar-se nele. O momento em que isso fica claro é, igualmente, o momento em que toda a segurança do leitor se estraçalha: não se pode confiar em Sócrates. Tudo o que se sabe é que nada se sabe. É assim que Platão ensina ao leitor que todos somos Sócrates. Todos buscamos saber. Todos queremos alcançar a Deus.
Pode existir diversas maneiras corretas de se ler o diálogo, mas certamente há uma errada: aquela que evita o engajamento com o texto e fica nas definições sem nenhuma preocupação com o contexto. Não há nada n’O Banquete que alguém possa tomar definitivamente por certo ou errado. Todas as opiniões expostas carregam algo da verdade, e a dificuldade está em discriminá-las das inverdades que também se fazes presentes nessas. É preciso simultaneamente aceitar e duvidar de tudo o que se lê.
Deus e a Missa: Todos somos Cristo
O Banquete de Platão é uma encenação; a missa católica, também. Aliás, todo ritual é um teatrinho, cuja verdade experimentamos ao tornarmo-nos personagem da peça. Sem engajamento, não há aprendizado. É preciso agir como se fôssemos parte daquilo, pois a realidade da peça é diferente da realidade “real”. Eu vou para a missa pois essa me ensina algo verdadeiro sobre mim e sobre o que é ser humano.
Pois bem, e qual a realidade da missa? Para começar, o fiel vai à missa para morrer. Na missa, Cristo morre. Ele morre porque eu pequei, e, ao pecar, morri com Ele na Cruz. É assim que a Igreja ensina ao fiel que todos somos Cristo.
Na missa aprende-se que o pecado não é um Bem. Pecar é morrer; é desumanizar-se. A missa, portanto, é um ritual de sacrifício humano, antropofagia, e suicídio coletivo. Na missa, Cristo é morto; seu Corpo e seu Sangue são compartidos; e quem bebe o Sangue e come a Carne morre com Cristo na Cruz.
“Que horror!” Seria um horror, mas não é – por dois motivos: primeiro, a realidade da missa é diferente da realidade real; segundo, a missa não termina aí. A missa é também um ritual de arrependimento, união comunitária, perdão, religação com Deus, e ressurreição.
Na missa
Na missa, percebo que não estou sozinho. Não sou o único a pecar. Ninguém está livre do pecado. Todos nós matamos Cristo. Igualmente percebo que estamos todos igualmente mortos. Na missa, aprendo que somos todos iguais. Ainda, percebo que todos nós ali estamos arrependidos porque todos nós, cada um a sua maneira, matou Cristo. E, em cada missa, as pessoas e os pecados são diferentes. Não há uma missa igual a outra.
Cristo morre para tirar os pecados do mundo. “O amor de Cristo nos uniu”. Não estamos apenas “em unidade” com Cristo, mas com o outro em Cristo. Na Cruz, em Cristo, estamos todos. Somos iguais no pecado e no Amor. Na missa, aprendo que sou parte de uma comunidade com Deus e com os outros; aprendo que amar o outro é amar a mim que é amar a Deus que é amar tudo em comunidade.
Com Cristo, na missa, todos ressuscitamos. O nosso pecado foi tirado do mundo. Fomos perdoados. Pecar é morrer, mas não fomos mortos. Essa é a “Boa Nova”. Vamos à missa para morrer. O sacrifício da missa é pessoal. Deus, no entanto, sacrifica o Filho, a si próprio em nosso lugar. Ao morrermos em Cristo, recebemos o perdão e a vida. Não há motivo para desesperar-se. Cristo venceu sobre o Cosmos. Há sempre oportunidade para fazer o Bem.
Final Feliz: de volta ao começo
Tanto n’O Banquete quanto na missa o final da história é feliz. Porém, como o final de ambas as histórias é em “Deus”, oh, sina!, não é um final final. O final segue em aberto, sempre. Estamos, pois, irremediavelmente de volta ao começo. “Não importa onde se esteja, estamos na mesma distância de Deus.” (Tomás Moro) Deus é uma direção, para a qual se segue por amor.
Como saber a direção certa? Com a ajuda do outro. Estamos todos nessa, “um ajudando o outro no caminho do Bem” – como Platão escreve. Só amando a Deus e ao próximo como amamos a nós mesmos é que conseguimos voltar para o Caminho. E isso é verdadeiro para todo mundo, mesmo para quem não leia filosofia, vá à missa, ou creia em Deus.
Afinal, se Cristo é “o caminho, a verdade e a vida,” ele é tanto meio quanto fim. Como a igualdade permite a inversão, logo: se é verdadeiro, é Cristo; se leva ao verdadeiro, é Cristo. Não importa a forma, pois a substância sempre é Cristo. E Cristo somos todos nós. Esse, inclusive, seria o sentido de uma declaração do papa Francisco à uma associação de ateus: “sejam bons, e nos encontramos lá.”