Nas últimas duas semanas publiquei, aqui no Blog de Valor, dois artigos sobre Constituições e Crises: o Brasil e a Ordem Real. e o artigo Exemplos de Sucesso, a respeito de cases de sucesso quando o assunto é Constituição. Hoje será a vez de finalizarmos esta série e voltarmos a falar do Brasil.
O Brasil atravessa uma crise política de alta ordem. A eleição de Bolsonaro à presidência é, como fora o impeachment da Dilma, um sintoma dessa crise. Nenhum dos referidos casos são soluções, mas atos paliativos – ainda que importantes. Caso a crise não seja enfrentada e tratada profundamente, esses episódios terão sido de pouca valia.
Não se trata da primeira crise, tampouco será a última. O principal problema é não termos o arcabouço institucional necessário para lidar com esse tipo de crise.
Pior, a nossa estrutura agrava o problema. Portanto, para ser preciso, a atual crise brasileira, mais do que econômica ou política, deve ser considerada como “crise constitucional.”
As Tensões Constitucionais
Em qualquer comunidade política, segundo explica Eric Voegelin, há três tensões principais e insolúveis: uma, entre a ‘ordem existencial’ e a ‘ordem concreta’; outra, dentro da ordem concreta, entre a ‘ordem social’ e a ‘ordem institucional’; e, por fim, há as tensões intrínsecas às ordens social e institucional.
Tensão I – as ordens existencial e concreta
Por ‘ordem existencial’ deve-se entender como sendo a melhor forma que determinada sociedade poderia atingir dentro das circunstâncias de momento. Isso vale para os indivíduos, também.
Nesse caso, seria a melhor versão de si mesmo na situação atual de cada um. Portanto, não se trata de um ideal de perfeição absoluto, mas algo relativo às condições particulares presentes.
Essa ‘ordem existencial’ contrasta com a ‘ordem concreta’, isto é, com a forma real que determinada sociedade mantém atualmente. Pelo fato de essas ordens não serem iguais, a situação corrente é sempre experimentada como sendo injusta e imperfeita. Sempre se pode ser melhor do que se realmente é.
Tensão II – as ordens social e institucional
Para tornar as coisas ainda mais complexas, a ‘ordem concreta’ tem duas ordens internas em constante conflito. A ‘ordem social’ é o arranjo natural e historicamente desenvolvido dos diversos indivíduos e grupos dentro de uma comunidade.
Essa ‘ordem social’ precisa estar em harmonia com a ‘ordem institucional’ – a forma como a sociedade se organiza institucionalmente para a ação política. Noutras palavras, a ‘ordem institucional’ precisa respeitar a ‘ordem social’ para que as ações políticas tomadas em nome da comunidade sejam identificadas e respeitadas como representativas daquela comunidade.
O que é Representação Política?
Toda ordem institucional alega ser representativa da ordem social. Porém, tal reivindicação precisa ser aceita e reconhecida pela comunidade. Representação não precisa ser necessariamente determinada por eleições periódicas.
O “consentimento dos governados” não é uma invenção moderna ou republicana, mas algo intrínseco a qualquer associação humana, incluindo as comunidades políticas.Nesse sentido, monarquias absolutas podem ser tão representativas quanto democracias diretas; ambas, tão representativas quanto democracias representativas; e essas, tão representativas quanto estados burocráticos.
Representação aqui faz referência à aquiescência por parte da comunidade das decisões tomadas em seu nome. Para que tal consentimento ocorra, é necessário que a ordem social se identifique com a ordem institucional.
Não há necessidade de que as decisões sejam unânimes para serem representativas. Afinal, a ordem social não é coesa e nem uniforme.
Tensão III – intrínseca à ordem social
Os diferentes indivíduos e grupos formadores e partícipes das ordens social e institucional têm perspectivas e interesses distintos e conflitantes entre si; estando sempre em constante conflito. As decisões e ações, portanto, jamais são unânimes.
Tais podem ser consideradas equivocadas por muitos, porém, tornam-se válidas e eficazes pelo reconhecimento de terem sido institucionalmente tomadas pela comunidade.
Crise – tensão no limite
Da mesma forma que a ordem concreta jamais consegue atingir todo o seu potencial e igualar-se à sua ordem existencial, a ordem institucional jamais abarca toda a ordem social. A representação nunca é perfeita.
Haverá sempre quem aja contrariamente à ordem concreta. Haverá sempre quem diga, independentemente do motivo ou da veracidade de tal motivação: “não me representa!” Essas tensões, pois, são imorredouras.
As tensões, em si, não são “crises”, mas fatos políticos. Crises ocorrem quando as diferenças entre as ordens existencial e concreta e entre as ordens social e institucional tornam-se tão díspares que chegam ao limite do suportável. Nesses momentos, a comunidade precisa olhar para si, enxergar onde estão os erros (as causas da crise), e agir para corrigi-los.
Infelizmente, o Brasil encaminha-se para essa situação. É mister que evitemos o equivalente político das recentes tragédias de Mariana e Brumadinho e resolvamos a questão antes de haver rompimento.
A Crise Constitucional Brasileira
A causa da nossa crise política, portanto,estaria na crescente perda de legitimidade da ordem institucional perante a ordem social.Essa falta de representatividade da ordem institucional geraria a instabilidade social que ora experimentamos.
Haveria, pois, uma necessidade de rearranjo institucional, mas um que contemplasse a ordem social brasileira como um todo e respeitasse nossa ordem existencial.Caso contrário, teremos nova crise séria logo adiante – como tem ocorrido constantemente desde a proclamação da República.
Agora, como fazer?A ordem existencial é dependente da ordem concreta, a qual é dependente da ordem social. Afinal, se só podemos ser a melhor versão daquilo que somos, será aquilo que a gente é o elemento determinante da nossa melhor versão; e as nossas circunstâncias estão em constante transformação.
Fundamentos de Constituições Duradouras
Os melhores exemplos atuais de constituições bem sucedidas seriam as do Reino Unido e dos Estados Unidos. Aparentemente, no entanto, essas não poderiam ser mais diferentes: a britânica, não-escrita e flexível; a americana, escrita e rígida.
Ambas, porém, cada uma a seu modo,baseiam-se em suas respectivas ordens sociais concretas e são igualmente adaptáveis a novas circunstâncias. Essa mutabilidade vem do fato de nenhuma responder a questão da “ordem existencial”, deixando a resposta final sempre aberta.
Essas constituições promovem as tensões internas da ordem social e almejam que seus elementos estejam presentes na ordem institucional. Isso permite que os debates sobre a ordem existencial, a ordem concreta, e a relação de uma com a outra seja sempre compreendido como sendo feito pela sociedade como um todo. Portanto, as respostas tendem a ser representativas da comunidade naquele momento.
Inevitavelmente, há momentos em que a tensão constitucional cresce ao limite. Isso está acontecendo no Reino Unido e nos Estados Unidos agora, inclusive. Porém, historicamente, a ordem institucional nesses países tende a se rearranjar, adequando-se ao novo equilíbrio social sem rupturas. Com isso, os canais institucionais conseguem conter e limitar a tensão preservando a ordem política concreta.
Os sistemas não são perfeitos, todavia. Há sempre o risco de rompimento. Ambos os países têm registro de momentos em que a comunidade política poderia ter sido dissolvida. O pior é evitado pela prática de atravessar momentos de crise e pela percepção generalizada de que a comunidade é formada por todos os seus elementos – inclusive por aqueles de quem discordamos.
Portanto, constituições duradouras almejam englobar todos os elementos da ordem social, tanto no espaço quanto no tempo:identificam os elementos formadores da ordem social historicamente; promovem as tensões entre tais elementos no presente;e são adaptáveis a mudanças futuras. O desafio do Brasil é encontrar sua constituição e concretizá-la respeitando essas três características.
O Vira-Lata tem que dar certo?
O Brasil precisa corrigir seu problema de representação. Nas palavras, totalmente fora de contexto, de Sérgio Buarque de Holanda: “… presentemente a revolução necessária seria uma contrarrevolução.
Em outras palavras, um movimento tendente a restabelecer, nos devidos limites, a ‘mentalidade própria para o soneto’.” (Crítica e Poesia – 1940)A tarefa dos constituintes seria semelhante a escrever um soneto – respeitando a forma, a qual precisa tanto ser brasileira quanto permitir que nos tornemos melhores brasileiros. Temos que buscar produzirmos bons e belos sonetos!
Infelizmente, não há um “soneto político” definido que sirva para todos os casos. É preciso ser criativo para determiná-lo e desenvolvê-lo considerando cada caso em concreto. Os parâmetros para isso, ao menos, já foram vistos: (a) estabilidade social e institucional; (b) auto-aceitação histórica e política [fim do complexo de vira-lata]; e (c) ausência de ansiedade teleológica.
Simplificando, precisamos acabar com o “complexo de vira-lata” e com “tem que dar certo“; aceitar quem somos e entender que o fim da política é si mesma. Política dá certo quando se faz política!
Para tanto,é necessário estabelecer um arcabouço institucional que: (I) estimule a busca, na origem, no passado, dos fundamentos da comunidade política; (II) seja compatível com as estruturas de poder do presente; e (III) permita balizar a ação política de modo a, no mínimo, assegurar a contínua participação futura.
Os Dois Brasil
Qualquer desenho constitucional que possa ser bem sucedido em estabelecer uma ordem política duradoura deve ser inspirado na história brasileira, e na nossa tradição, digamos, “anarco-absolutista”. As duas faces do Brasil devem, cada uma, representar lados opostos dessas tensões.
Por um lado, é necessário respeitar nossa tradição imperial, burocrática, centralizadora, hierarquizada, séria, e racionalista; por outro, deve-se fazer o mesmo com nossa tradição republicana, anarquista, subversiva, festiva, e caótica. A questão é como usar a combinação de tais elementos em nosso favor.
Resgate da Memória
No entanto, padecemos de uma enfermidade séria: perda de memória. O Brasil não necessita de uma nova Constituição, mas de uma reconstituição; isto é, precisamos reencontrar os fundamentos de nossa unidade constitucional brasileira – que já existe, mas se perdeu.
Os brasileiros, infelizmente, só lembramo-nos, politicamente, do que passou a partir de abril de 1964. Faz-se necessário, portanto, criar também condições para que o exercício de recordação política seja estimulado.
Todavia, a memória nunca volta de uma vez só, e jamais volta igual. O processo de recordação é também de reconstrução.
O desafio é árduo, pois entra no paradoxo “do ovo e da galinha”. Se os britânicos descobriram algo que já existia e funcionava, e os americanos constituíram algo fundamental, mas que não existia, nosso desafio está em descobrir algo que já existe, mas que não funciona.
Conclusão
No nosso caso, o que fazer? Devemos estabelecer instituições e esperar que sejam compatíveis com a constituição da sociedade brasileira, próximo ao experimento americano, ou devemos deixar que a sociedade trabalhe as tensões de modo que algo como uma versão tupiniquim do “King-in-Parliament” surja naturalmente?
Ora, deve-se fazer ambas as coisas! É necessário aceitar o mistério de que ovo e galinha surgiram ao mesmo tempo. Na história brasileira encontrar-se-ão os fundamentos para o estabelecimento de instituições compatíveis com a essência da comunidade brasileira, ao mesmo tempo em que se deve dar-lhes flexibilidade suficiente para que se ajustem às novas circunstâncias através da própria prática política.
Como exatamente? Infelizmente, não sei; e, mesmo que soubesse, não compete exclusivamente a mim responder.
Essa é uma questão que deve ser respondida pela comunidade como um todo, ainda que através de seus representantes. A minha intenção era trazer o debate à tona e delinear um caminho. Agora, desenhar o mapa e mover-se na trilha são ações completamente diferentes.